23 de outubro de 2017

Novas Respostas a Comentários Alheios

   Caros leitores, saúdo-vos mais uma vez após uma extensa ausência, no decurso da qual tentei incansavelmente discernir um tema, sempre, lamento dizê-lo, sem sucesso. Eis, porém, que as idiossincrasias da programação televisiva me fizeram descobrir o ciclo de conferências Fronteiras XXI, resultantes de uma parceria entre a RTP e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (preferiria não fazer qualquer tipo de publicidade ou referência eventualmente puco recomendável do ponto de vista judicial, mas, tratando-se de um ciclo de debates, espero não haver grandes problemas…), ao abrigo do qual, no passado dia 4 de Outubro, foi emitido o programa “De Que Escola Precisamos”, que tomei a liberdade de visionar para o poder comentar aqui. Todo o intervalo entre o momento da emissão e o da publicação desta entrada se deve, em grande medida, às vicissitudes do falecimento de corpo e mente a que, já nem sei bem com que ironia, se costuma chamar vida académica, intervalo esse que lamento profundamente e que espero que os meus leitores possam compreender.

   Em primeiro lugar, uma inevitável (e, aparentemente, frequentemente ignorada…) crítica: trata-se de um programa onde se irá debater o ensino, o estado do ensino, possíveis melhoramentos do sistema de ensino, possíveis organizações alternativas do sistema de ensino, mas quem são os intervenientes no debate? Professores. Apenas professores. Da última vez que o verifiquei, havia pelo menos mais dois grupos que, por serem tão ou mais implicados em quaisquer questões do âmbito do ensino do que os professores, deveriam estar presentes: os alunos e os funcionários (além, claro, de pais e encarregados de educação, mas estes, diria, só são chamados à questão por intermédio dos alunos – se descontarmos o facto de todos os elementos da sociedade a ela deverem ser chamados…). Admito que desconheço se houve alguma espécie de convite não aceite para com algum membro dos grupos referidos (se, de facto, houve, podem considerar esta crítica como produto da minha ignorância e incompetência), mas, tanto quanto tenho vindo a verificar em programas que partilham a temática com este, não são tão frequentes quanto isso participações em sua representação, o que, para mim, indicia fortemente que, na maioria das vezes, são pura e simplesmente ignorados (como poderia suspeitar que, de algum modo, foram aqui).

   Esta queixa à parte, mais ou menos no início do programa, é abordada a temática do ensino doméstico. Devo admitir que, pela minha parte, se trata de um assunto que nunca abordei de uma forma individual, tendi sempre a aglomerá-lo na questão mais ou menos genérica das aulas à distância, e creio que por uma boa razão: é um sinal extremamente preocupante que haja pais/encarregados de educação que optam (diria que não sem razão) por tomar a seu cargo a transmissão de conhecimentos aos alunos, posto que tal acontece maioritariamente porque se reconhece, ou se crê, ou se conclui (mais uma vez, diria que não sem razão…) que o sistema de ensino não tem capacidades para o fazer. De qualquer das formas, falando dos inescapáveis Mini-Ciclos de Leccionamento, diria que seriam precisamente os mecanismos das aulas à distância que possibilitariam esta escolha, que, de resto, tenho a esperança de ser reduzida, por ser reduzida também essa incapacidade, mais real do que imputada, de o sistema de ensino ensinar…

   Depois, foi, como dificilmente poderia ter deixado de ser, mencionada a recente introdução da “flexibilidade curricular” (destaco as aspas assaz propositadas…), ao abrigo da qual as escolas vão poder decidir 25% do currículo. Sendo este um tema que já abordei especificamente, tentarei não me repetir demasiado, mas creio que nunca é de mais frisar outra vez que, do ponto de vista dos alunos, fica tudo absolutamente igual, posto que lhes continua a ser exigido que saibam estudem 100% de matéria decidida por outros. Mesmo que a decisão seja, agora, feita também a nível local, deixando em aberto a possibilidade de os alunos nela intervirem, tenho fortes suspeitas de que não serão avassaladoramente numerosos os casos em que dessa intervenção resulte verdadeiramente qualquer alteração que não se enquadrasse no que já havia sido ponderado pelos decisores burocrática e hierarquicamente vistos e tidos como mais importantes…

   Adicionalmente a isto, um pouco por todo o programa, foi amplamente abordada a velha questão do ensino para a cidadania da escola como transmissora de valores, et cætera. Já me pronunciei sobre isto antes, tal como o aspecto anterior, e, nesse sentido, preferirei remeter para a entrada em causa, mas não me custa, nem é despiciendo, destacar que, para mim, há duas componentes bastante distintas nesta questão: “em que medida é que a escola, enquanto parte integrante da sociedade, enquanto instituição formada por pessoas, deve contribuir para a formação, ética e/ou moral, dos futuros cidadãos?” e “em que medida é que a escola, enquanto local de transmissão de conhecimentos, deve contribuir para a formação, ética e/ou moral, dos futuros cidadãos?”. Se a resposta à primeira é, mais ou menos inegavelmente, positiva, a resposta à segunda, pelo menos, para mim, já não é tão clara, embora a minha análise tenha sempre tendido mais para uma resposta negativa; não defendo, de modo algum, que nos tornemos selvagens e abandonemos mais ainda quaisquer noções de ética, de moralidade, de comportamento correcto e aceitável, antes pelo contrário, mas estou em crer que a escola, enquanto escola, não deve ser o sítio principal de transmissão desse tipo de noções, também sob pena de deixarmos as portas abertas a um número ainda mais significativo de manipulações e condicionamentos, que só por lógicas e retóricas enviesadas poderíamos ver como desejáveis.

   Um outro tema mais ou menos abrangente que foi abordado (embora talvez com menor detalhe) foi o da interdisciplinaridade, apresentado um pouco no seguimento do incontornável exemplo finlandês. Dada a ideia que defendo, creio ser mais ou menos óbvio que albergo a opinião de que a divisão em disciplinas é largamente arbitrária, insuficiente para representar correctamente o conhecimento humano, e, por vezes, contraproducente para a sua compreensão; porém, a noção da interdisciplinaridade defendida (que passa, em grande medida, pela criação de projectos que se enquadrassem em mais do que uma disciplina, mantendo elas, para todos os efeitos excepto esses, as suas existências e essências separadas) não me parece imensamente coerente… A inclusão dos projectos até pode ajudar a potenciar o interesse dos alunos (admitindo que a carga horária não dificulta imensamente a sua realização e que a forma como são apresentados não corresponde ao “aqui têm mais uma coisa para fazerem” genérico que surgia, com maior frequência do que o que deveria, nas antigas disciplinas que pretendiam fomentar essa mesma interdisciplinaridade, como Formação Cívica ou Área de Projecto), e, consoante os temas, até poderia vir mesmo a ser necessário compreender as ligações entre as áreas do conhecimento em causa, mas a visão fragmentada, segmentada, seccionada do conhecimento não deixaria de se aplicar a praticamente tudo o resto, o que quer dizer que haveria, na melhor das hipóteses, apenas uma interdisciplinaridade aparente. O que é o mesmo que dizer, nenhuma interdisciplinaridade.

    De não menor importância foram as referências à necessidade de encontrar mecanismos para aferir (abster-me-ei, por razões que espero que sejam óbvias, de usar o termo “avaliar”…) até que ponto uma qualquer mudança, uma qualquer inovação no ensino é bem-sucedida. Por toda a lógica, isto faz sentido, enfim, se o objectivo é melhorar as coisas, convém garantir, dada a complexidade inerente a todos os aspectos intervencionados, que as medidas tomadas vão, de facto, no sentido pretendido, o problema está em discernir critérios apropriados para o fazer de forma completamente objectiva e, sobretudo, não tendenciosa. Por um lado, tendendo as instituições a ser maioritariamente conservadoras e resistentes à mudança, é bem possível que, a priori, a aferição seja efectuada de uma forma que beneficia o que já existe (não direi que obrigatoriamente de uma forma deliberada, pode ser simplesmente uma tendência inconsciente para o conservadorismo); por outro lado, pode acontecer que as alterações que estão a ser aferidas inviabilizem o uso, ou, no mínimo, a fiabilidade de alguns instrumentos que antes existiam e que, como tal, poderiam ser tidos como bons critérios (um exemplo concreto seria o da eventual aferição da viabilidade dos Mini-Ciclos de Leccionamento por intermédio da comparação dos resultados dos alunos deles provenientes nos exames nacionais com os dos restantes alunos: não me parece, de todo, inverosímil que as diferenças no ritmo de aprendizagem, na forma de aprendizagem, na filosofia por detrás da aprendizagem, bem como a muito menor exposição a momentos de avaliação como os exames – além da quase nula preparação específica para eles… – implicassem resultados piores, não tanto porque os alunos não soubessem as matérias em causa, mas porque não estavam tão familiarizados com a forma como lhes era pedido que demonstrassem que as sabiam). E, neste mesmo sentido, devo destacar que a confiança nos, ou dependência dos, testes PISA para efectuar análises comparativas de sistemas de ensino pode incorrer precisamente neste tipo de problemas, mais a mais porque (como vim a descobrir há não muito tempo, com alguma surpresa, mas também algum contentamento…) estes podem não ser tão isentos de falhas na sua aplicação quanto habitualmente se pensa…

Também se mencionou outro aspecto que vale a pena abordar aqui: até que ponto mudou, efectivamente, o ensino nestes últimos tempos? A opinião geral e mais ou menos consensual pareceu-me ser a de que a resposta era afirmativa, mas eu, como sempre, tenho de me atrever a discordar. É certo que se verificam algumas diferenças entre o ensino de outrora e o ensino de agora, mas não me parece muito lícito considerá-las como resultado de um processo inteiramente deliberado de alteração do sistema de ensino; afinal, houve todo um conjunto de modificações a nível social, tecnológico, científico, quando não mesmo político, e isso, por si só, promove novas maneiras de encarar a escola, novas filosofias de ensino, que, a meu ver, são capazes de originar grande parte das diferenças que se verificam. Não poderei negar que certos aspectos organizacionais, legislativos e/ou burocráticos foram, de facto, alterados, mas arriscaria dizer que essas alterações, quando considerada a totalidade do funcionamento do sistema de ensino, foram essencialmente cosméticas, marginais, insignificantes, porque todo o paradigma de ensino ficou praticamente na mesma. Portanto, em última análise, podemos dizer que o ensino permanece essencialmente inalterado. Ainda assim, há motivos (não despiciendos, devo admitir) para criticar uma certa instabilidade no ensino, no sentido em que, consoante mudam os Ministérios da Educação e/ou os governos a que pertencem, também mudam certos aspectos, certas iniciativas, certas políticas, por vezes de uma forma quase cíclica, prejudicando diversamente a capacidade do sistema de ensino para desempenhar a sua função – precisamente a de ensinar. Devo mencionar que já antes dei uma potencial solução para esta problemática, que considero digna de voltar a ser referida aqui: a criação de uma entidade oficial, estatal, mas independente do poder político, que fosse responsável precisamente por dirigir, gerir e administrar o ensino.

   Uma outra temática mais ou menos inevitável seria a do abandono escolar, que, embora não tão amplamente discutida, foi, na mesma, mencionada. O problema nessa abordagem, devo dizê-lo, foi ter sido dado um destaque muito maior às causas económicas e sociais (que, sem dúvida, existem e devem ser resolvidas – ainda que fique, pelo menos, por agora, por determinar a forma de as resolver…) do que o que foi dado às causas intrínsecas ao sistema de ensino. É certo que as primeiras são mais prementes do que as últimas, mas creio não ser ilógico pensar que, se aprender fosse uma actividade muito mais agradável do que é agora, as situações de abandono escolar seriam menos frequentes; nesse sentido, parte da culpa tem de residir sempre na estruturação do sistema de ensino, que, quod est demonstrandum, não é, de todo, ideal. Volto a dizer, a componente sócio-económica do problema não deve ser ignorada, não pode ser ignorada, não é admissível nem desejável que o seja, pelo que tem de ser resolvida, e, já que falo de questões sociais, devo destacar um comentário por parte de Maria Manuel Mota, que mencionou que a sociedade actual não dá o devido destaque e a devida importância ao conhecimento, que (já o estou a acrescentar eu) deve ser bastante .

   E, para terminar as considerações gerais, devo fazer uma de natureza indirecta: mencionou-se, com a maior das naturalidades, a desigualdade que é gerada pelas diferentes capacidades financeiras e subsequentes diferenças na capacidade de acesso a alguns meios de apoio, em particular, as explicações. Sem querer entrar em mais espinhosas reflexões acerca de gratuitidades devidas ou necessárias, e da possibilidade de certos aspectos e/ou pormenores do funcionamento do ensino estarem estruturados não tanto, ou não só, no sentido de potenciar a aprendizagem, mas sim aquilo a que cheguei a chamar O Negócio do Ensino, dificilmente poderia deixar de me questionar: será que um sistema de ensino onde uma percentagem tão significativa dos alunos recorre, mais tarde ou mais cedo, a um explicador externo para suprir as falhas na aprendizagem que se torna relativamente habitual, senão mesmo comum, falar dessa prática funciona bem? Há coisas que existem e não podem ser ignoradas, sim, mas mencioná-las natural e despreocupadamente (relativamente a elas, entenda-se, posto que a preocupação existia, mas ia noutro sentido) é basicamente o mesmo que aceitá-las, e eu muito dificilmente poderia considerar lícita a perspectiva de que não é o dever do sistema de ensino garantir a melhor compreensão possível por parte dos alunos no que toca aos conhecimentos em causa… Voltando a ser um pouco especulativo, sinto-me tentado a dizer que o facto de esta ser uma problemática muito pouco levantada quando se fala do ensino pode ser motivado pela possibilidade de haver muita gente que extrai alguma forma de conforto ou benefício da forma como as coisas estão…

   E, nesta mesma veia de afirmar algo naturalmente ser equivalente a aceitá-lo, tenho de mencionar os dois momentos em que se fez isso mesmo relativamente ao pormenor de grande parte do dia das crianças e jovens ser passado na escola (pese embora tenha havido uma comparação com o número de horas passadas na escola noutros países europeus, foi mais a forma como esse número evoluía ao longo dos anos escolares e não o número propriamente dito que foi posto em causa). Temos de compreender que muitas famílias não conseguem ter a disponibilidade temporal de cuidar dos alunos durante grande parte do dia (e/ou a disponibilidade financeira de os inscreverem num qualquer estabelecimento capaz de o fazer – acção que, de resto, não é, de todo, isenta de falhas e indesejabilidades), mas talvez fosse o dever da totalidade da sociedade garantir que todos os seus membros, e sobretudo os mais indefesos e/ou menos capazes de resolver por sua conta os problemas que possam surgir, estavam em segurança. Estou a ser utópico (mais ainda do que o habitual), bem o sei, a natureza falível do ser humano a modos que o impossibilita, mas creio não estar, de todo, equivocado se afirmar que, quanto maior o tempo passado (subentenda-se, sem necessidade e/ou sem interesse…) pelos alunos na escola, mais duvidosa a qualidade do sistema de ensino e a capacidade da sociedade em causa de cuidar dos mais novos…

   Passando, agora, a situações concretas, a dado momento, David Justino afirmou algo como “o ensino de massas permitiu escolarizar 80% da população mundial”. Sem querer incorrer na muito natural falha de cuspir no prato onde come a mão ligeiramente mordida que já nos fez passar fome da ingratidão, parece-me que, dado o rumo que o Mundo aparenta estar a seguir, se está a ver bem que tipo de resultados é que esse tipo de escolarização, tal como é, tal como foi, tem tido… Cepticismos e cinismos à parte, acaba por ficar sempre em aberto uma importante questão: desses 80% que foram escolarizados pelo ensino de massas, que porção do conhecimento que (supostamente) lhes foi transmitido, e que, como tal, lhes é oficialmente reconhecido, é que conseguiram verdadeiramente guardar? Ou, por outras palavras, que tempo e recursos não terão sido desperdiçados, devido às próprias características do ensino de massas, em exposições (por parte dos professores) e tentativas de compreensão (por parte dos alunos) que, mais tarde, vieram a resultar em pouco ou nada?

   E, para terminar, uma reacção a uma outra declaração de Maria Manuel Mota, que apontou (correctamente, devo acrescentar…) como falha grave da sociedade e do ensino o pormenor de não se acreditar que aprender é uma coisa maravilhosa. E o que queria dizer era mesmo que essa crença não existe, em grande medida, devido aos erros do sistema de ensino, que ajouja essa potencialmente agradável actividade a um sem-fim de outras obrigações, de outros actos mais ou menos burocráticos, mais ou menos sem sentido, que pura e simplesmente retiram todo e qualquer prazer a esse acto de aprender; nesse sentido, dizer que, para melhorar o ensino, se torna necessário fazer as pessoas crer que aprender é agradável é… falacioso: diria antes que, se o ensino for suficientemente melhorado, sobressairá, automática e naturalmente, aos olhos de todos, que aprender é, de facto, uma coisa maravilhosa.

   E, sendo este um pensamento que, sem grande subjectividade, poderemos considerar agradável, será, também, agora o momento ideal para dar esta entrada por terminada, até porque já me excedi bastante. Fiquem bem, contestem sempre, comentem (se quiserem), aqui ou nos Contactos, e até à próxima entrada!