22 de abril de 2018

Da Liberdade Territorial

   Caros leitores, tenho a apresentar-vos uma nova entrada em mais rápida sucessão relativamente à anterior do que o que tem vindo a ser costume. Não sei se isso é intrinsecamente positivo, mas quero pensar que sim. E o que me despoleta esta renovada vontade de escrever? A intenção, ou a medida, anunciada mais ou menos recentemente pelo Ministério da Educação, de exigir a confirmação das moradas providenciadas às escolas no decurso das inscrições dos alunos.

   Como abundantes textos meus o afirmam, sou um grande apoiante do conceito de flexibilidade; nesse sentido, não creio que a sua aplicação deva ser limitada ao âmbito do funcionamento do sistema de ensino, antes podendo – e devendo – estender-se a uma vasta gama de aspectos organizacionais da própria sociedade. A questão dos constrangimentos espaciais é um deles: creio que os cidadãos devem ser livres de poder determinar o local que, no seu entender, mais se adequa às suas necessidades ou possibilidades; forçá-los a utilizar os equipamentos do seu concelho de residência é severamente limitador, é um regresso desnecessário e indesejável aos tempos dos servos da gleba, onde os camponeses ficavam confinados às terras do seu suserano e de lá não poderiam sair. Sei bem que há toda uma questão logística por detrás, não seria exequível, no caso limite, ter a totalidade da população a utilizar as mesmas instalações, mas daí a fixar as pessoas a uma distribuição territorial que, em muitos casos, poderá ser tudo menos lógica ainda há muita margem de manobra que talvez devesse ser aproveitada.

   Transpondo para o assunto que é relevante para o contexto deste blog, não faz sentido forçar os alunos a frequentar as escolas do concelho de residência dos seus encarregados de educação: por um lado, dependendo do local onde habitem efectivamente, pode suceder que essas escolas sejam mais distantes (ou menos acessíveis, tendo em conta os transportes disponíveis…) do que a(s) do(s) concelho(s) vizinho(s); por outro lado, caso esses encarregados de educação passem a maior parte do seu tempo – por razões laborais, mas flagrantemente, mas não vejo porque não haveriam de ser outras quaisquer – num qualquer outro local, seria prejudicial para as suas capacidades de se encarregarem efectivamente da educação dos seus educandos forçar estes a permanecer junto da sua habitação, e, por isso, longe dos respectivos encarregados. Em suma, não me parece lógico que se imponha qualquer tipo de constrangimento espacial a priori na escolha da escola a frequentar.

   Dito isto, e dado que haverá, forçosamente, um número finito de vagas em cada estabelecimento, surge a brilhante ideia de considerar a concordância do concelho de habitação com o da escola como um dos critérios prioritários de selecção dos alunos… O que, muito espantosamente, conduz a nada mais, nada menos do que uma boa dose de fraudes e falsificações no sentido de garantir a preciosa vaga. Enfim, a velha história de dar a morada do trabalho, ou de familiares, ou de completos desconhecidos, de modo a que as escolas pensem que as crianças habitam outro local que não aquele em que efectivamente habitam.

   E, face a isto, o que se faz? Tentar minorar os motivos para essa fraude, tentando aumentar o número de escolas onde há mais procura? Não: apenas se aumenta a sua complexidade, exigindo provas de que o aluno habita, de facto, no local indicado e/ou que faz parte do agregado familiar do encarregado de educação. Não estou, pelo menos, por agora, plenamente ciente dos diversos documentos que poderão ser entregues como prova, mas, pelos meios de comunicação social, sei de pelo menos um deles que pode ser, no mínimo… insatisfatório: a declaração de IRS. Vejamos um exemplo mais ou menos plausível: a criança passa grande parte do seu tempo em casa dos avós (que, para propósitos do exemplo, vamos admitir que habitam num concelho distinto do da criança, mas que fica suficientemente em caminho para os pais a levarem e trazerem aquando dos movimentos pendulares associados aos seus empregos), razão por que fará todo o sentido que fique numa escola das redondezas; no entanto, dorme em casa dos pais, passa lá os fins-de-semana, e são estes que, de uma maneira geral, se encarregam dos gastos com a sua educação, a sua saúde e tudo o mais, pelo que ela surge, para todos os efeitos, como parte do seu agregado familiar, e não do dos avós. À luz destas novas medidas, creio que não seria possível que a criança frequentasse a escola perto dos avós, o que – a não ser que eu esteja a ser particularmente libertino – me parece pouco menos do que ridículo, além de potencialmente prejudicial para a qualidade da educação que ela recebe. Afastamo-nos, mais uma vez, daquele que seria o objectivo: flexibilizar, facilitar, tornar as coisas mais fluidas, mais adaptáveis às idiossincrasias de todos (e não falo, por agora, em termos pedagógicos, mas sim organizacionais). Por isso, não posso deixar de manifestar a minha discordância relativamente a estas medidas.

   Há, muito naturalmente, a eterna e inclemente questão da logística, da limitação de vagas, da indisponibilidade dos equipamentos, mas não creio que a solução ideal passe, como comecei por dizer, pela delimitação geográfica pura e dura. Sem dúvida que deveria ser tida em conta a proximidade de familiares e/ou potenciais cuidadores (bem como a sua mobilidade e disponibilidade), no sentido de garantir que os alunos que não tenham mais nenhuma alternativa viável ficam mesmo na escola de que necessitam, mas, fora isso, não vejo (deixando de parte questões espinhosas como a eventual contribuição fiscal, directa ou indirecta, do agregado familiar em causa para a autarquia em que a sua residência se enquadra…) qualquer razão para se dar primazia aos do concelho em detrimento dos “de fora”, ainda para mais porque só em casos bastante estranhos quererá um aluno frequentar (ou quererá a família que um aluno frequente) uma escola numa zona que lhe fica largamente inacessível…

   E era isto que tinha para dizer. Talvez seja essencialmente inconsequente, talvez tudo o que escrevo (e digo e faço…) o seja, mas está este texto acabado e, por isso, sinto-me na obrigação de o publicar. Despeço-me com o renovado agradecimento por me lerem, até à próxima entrada…

12 de abril de 2018

Da Irreversibilidade do Falhanço, Dos Falhanços Irreversíveis

   Não, não é, caros leitores, qualquer intenção irónica ou auto-depreciativa que determina o título desta entrada. Poderia ser, dada a minha longuíssima ausência (mais de dois meses, será um recorde?), mas não é. Quero genuinamente oferecer-vos uma reflexão nova, ou, no mínimo, menos repetida do que as restantes que se me apresentavam como possíveis; não sei se o consegui, mas, pelo menos, tentei. Sempre escrevi: já é melhor do que não escrever… Pois em, quero trazer para a discussão a atitude que o sistema de ensino cultiva para com o falhanço, atitude essa que não posso deixar de considerar pouco razoável.

   Deixo uma ressalva importante: sou um daqueles seres intrinsecamente infelizes a quem, entre outras coisas, se pode apontar a falha do perfeccionismo. Nesse sentido, tenho de admitir que posso ser mais do que um bocadinho tendencioso na minha análise, uma vez que não posso deixar de ver o falhanço como algo indesejável, e, nesse sentido, como algo que deve ser evitado a todo o custo. Reconheço, naturalmente, a relevância do papel que ele pode desempenhar na descoberta (pela primeira vez ou só pelo indivíduo em causa) de novas coisas, mas em última análise, o que conduz a esses resultados mais ou menos positivos é a sua reparação.

   E isto introduz muito directamente a reflexão que quero fazer aqui; o falhanço só poderá ter qualquer utilidade (se é que a pode ter, de todo) se for reversível, e se a reversão desse falhanço for tida em conta na aferição do sucesso total, final, do que quer que seja que tenha originado esse falhanço. Fazendo uma metáfora muito óbvia e muito gratuita, no desenvolvimento de uma qualquer nova invenção ou engenhoca, o que conta é o modelo final, acabado, funcional, não a vasta gama de protótipos e modelos de teste que se tiveram de construir até se lá chegar. Mas o que é que faz o sistema de ensino? Toma em atenção todos os modelos, considera-os a todos um produto embalado e pronto a ser expedido; todos os momentos de avaliação contam, e, mesmo nos casos em que os conhecimentos e/ou técnicas avaliadas sejam cumulativas (que, de uma maneira ou de outra, acaba por ocorrer na grande maioria dos casos…), poucas ou nenhumas são as vezes em que melhoramentos posteriores podem reparar falhas anteriores. Por outras palavras, cada momento de avaliação é definitivo, cada eventual falha nele cometida, irreparável, e a perfeição, mais notoriamente inatingível do que no resto das coisas que acontecem neste já de si altamente imperfeito mundo.

   E isto, a curto, médio ou longo prazo (talvez suficientemente longo para que, na maioria dos casos, não seja muito aparente naqueles que mais depressa se libertam das vis amarras do ensino…), não pode senão ser prejudicial, por uma de duas razões: ou o aluno se ressente desse fracasso, tenta evitá-lo a todo o custo e, de uma maneira ou de outra, esgota todo e qualquer resquício de vontade e capacidade de fazer as coisas correctamente (digo resquício porque o depósito principal tende a ser esvaziado pelo simples facto de se frequentar o sistema de ensino…), ou se insensibiliza perante esse fracasso e, em menor ou maior escala, deixa de se preocupar, esforçando-se o mínimo indispensável para progredir (se não ainda menos…). E não creio ser necessário explicar que ambas as situações são indesejáveis, podendo chegar, sobretudo no primeiro caso, a ser pouco saudáveis.

   Digo muitas vezes que o principal propósito do sistema de ensino deve ser o de transmitir conhecimentos. No entanto, não podemos ignorar os eventuais efeitos secundários que possui ou acarreta, neste caso, em termos das atitudes e perspectivas dos que o frequentam. Queremos mesmo uma sociedade onde os cidadãos se preocupam demasiado com a possibilidade de falhar, a opto de entrar em pânico ou ter crises de ansiedade (que ironicamente, poderão facilitar precisamente o falhanço que se receava)? Queremos uma sociedade onde os cidadãos não são minimamente afectados pelos seus potenciais falhanços, cultivando uma mentalidade de “desde que funcione, desde que dê para se continuar assim, chega e sobra”? Ou queremos uma sociedade em que os cidadãos, cientes de que o ideal é não falhar, admitem que a natureza humana acarreta eternamente a possibilidade da falha, tendo, por isso, a plena noção de que o essencial é saber como, por um lado, desenvolver sistemas para a detectar e evitar atempadamente, e, por outro lado, minorar os seus eventuais efeitos adversos?

   Tenho de admitir a possibilidade de estar a incorrer na falácia conhecida por falsa dicotomia (ou, neste caso, falsa tricotomia), no sentido em que talvez existam mais possibilidades para além desta, mas, de momento, não me considero capacitado para discernir mais alguma. Em todo o caso, está já exposto o essencial: que os momentos de avaliação do sistema de ensino, que a própria estruturação intrínseca ao sistema de ensino, poderão não estar a cultivar a atitude mais desejável perante o falhanço, o que constitui, se me permitem a previsibilidade, mais uma razão por que se o deve (e se a deve) mudar.

   E, visto que o tempo se me encurta, se me perdoam a sucintez e a eventual incompletude dos raciocínios, ficarei por aqui, prometendo voltar assim que consiga, numa próxima entrada que espero que chegue mais depressa e seja mais abundante do que esta. Obrigado por me lerem (e mesmo por abrirem e fecharem a página logo a seguir, mas, se o fizerem, dificilmente saberão que vos agradeço por isso…) e não se acanhem, nunca se acanhem, no que toca a críticas, questões ou simples comentários relativamente ao que para aqui escrevo…