5 de outubro de 2016

A Palavra P

   Saudações a todos os leitores. Espero que esteja tudo bem convosco, ou, no mínimo, que os inevitáveis problemas que assolam todas as existências não estejam a manifestar-se em demasia por estas alturas. Pela minha parte, cá vou andando, embora motivos diversos me tenham forçado a estar ausente durante mais tempo do que o que pretendia, e tomei a liberdade de trazer para aqui um tema que – falemos sinceramente – é medianamente polémico e medianamente fracturante, e que, tendo sido palco de vago mediatismo por ocasião de uma tragédia, da qual muitos de vós certamente se lembrarão (Meco, 2013), acabou por cair mais ou menos no esquecimento. Sim, devo admitir que o meu timing talvez já não seja o mais adequado, porque o início das aulas, período em que este assunto está mais intensamente na ordem do dia, já não foi exactamente ontem, mas nunca a ocasião e a inspiração se conjuraram tão positivamente quanto o fizeram agora. E aquilo de que vou falar é, precisamente, da questão das praxes académicas, tema mais pertinente a nível do ensino superior do que noutros lados, ainda que, se não me falha a memória nem a informação, haja vagos casos fora dele (ainda que a escalas bastante menores e de formas infinitamente menos sistematizadas).

   Independentemente de razões histórico-culturais diversas para a sua existência (que, numa análise muito superficial, mas não muito errónea, poderemos atribuir ao mesmo tipo de instinto que levou a que se estabelecessem, um pouco por toda a parte, ritos e rituais de passagem de fases diversas da vida para outras fases da vida), poderemos dizer que esta questão das praxes já está enraizada em Portugal há bastante tempo (de facto, desde por volta do século XVI que se registam coisas deste tipo, e talvez mesmo antes disso houvesse práticas semelhantes…), e, neste sentido, acabamos por estar a falar a modos que de um certo poder instituído. Mas já sabem o quanto gosto de poderes instituídos, e, sobretudo, o que lhes gosto de fazer, não é?

   Mas, por agora, tentemos ser (tanto quanto a natureza humana nos permita!) imparciais. O ser humano é uma criatura essencialmente gregária, pelo que, na maioria dos casos, sente uma necessidade mais ou menos intensa de sentir que pertence a um grupo; face a uma situação perigosa, stressante ou, de uma maneira geral, preocupante, essa tendência para a pertença tende a aumentar significativamente. Nesse sentido, é mais do que natural que, nas transições escolares (e, sobretudo, naquela que, por idiossincrasias diversas do actual sistema de ensino, é mais marcada e notória…), esse instinto aglutinador venha ao de cima e os transitados se procurem, de facto, aglutinar. Assim sendo, e se quisermos ser medianamente simpáticos, a praxe pode ser uma forma mais ou menos organizada (e, poder-se-ia extrapolar a partir daí, embora não com absoluta justificação racional, que será, também, uma forma mais ou menos eficiente) de fomentar essa aglutinação social, com o eventual bónus de, para uma certa parte (uma boa parte?) das pessoas envolvidas, trazer consigo a possibilidade de diversão. E, acrescentariam alguns, ainda tem a vantagem adicional de manter e reforçar uma tradição antiga e, por isso mesmo (nas mentes desses alguns…), venerável e desejável (ainda que parte dessa tradição envolvesse maus-tratos, verbais e não só, mas isso digo eu e calam eles…).

   Mas… será mesmo assim? Muito ingénuos seríamos, a meu ver, se respondêssemos afirmativamente. Vários relatos, várias investigações, várias tragédias, variadíssimas fontes provam que as coisas não costumam ser tão lineares assim, e, mesmo que tais casos sejam apenas representativos de uma pequena fracção do que se passa (coisa que imagino que alguns leitores poderiam vir a argumentar), creio que nenhuma morte, mesmo que tenha sido meramente consequência de um “lamentável acidente” ou coisa do género, deve ser descartada como insignificante. E, se dermos uns passos atrás e olharmos para além da cortina de fumo das primeiras aparências, estou em crer que facilmente veremos que se passa uma coisa muito mais nefasta do que o que, à partida, se poderia esperar. Mas já lá vamos… Por agora, fixemos nas nossas mentes a dupla abordagem que importa fazer: a do conceito e a da sua aplicação.

   Comecemos pela aplicação, que talvez seja o aspecto mais fácil de abordar. Será esta, porventura, a principal fonte de discordâncias da praxe, e, enfim, não posso censurar ninguém por isso. Afinal, vendo as coisas de fora, o que sobressai é que temos basicamente um conjunto de jovens (em variados graus e estados de embriaguez…) a realizar parvoíces; não interessa, agora, que motivos os levam a fazê-lo, ou com que razões o justificam, o que interessa é que fazem parvoíces, e, como é compreensível, as mentes e os espíritos mais sérios rejeitarão, não sem certa razão, qualquer espécie de parvoíce. Poder-se-ia alegar que este aspecto pode facilmente ser resolvido, e que, aliás, já se começou a tentar resolver, implementando iniciativas como praxes solidárias e afins, só que mesmo estas padecem do segundo problema, da segunda razão de discordância, um pouco menos recorrente, talvez, mas que compartilho mais fervorosamente do que a primeira (também porque, pessoalmente, não posso ter qualquer tipo e preconceito relativamente à parvoíce, sob pena de me encontrar numa situação tal que terei de me julgar a mim mesmo…): a componente de humilhação em tudo isto.

   Se é deliberada ou inadvertida, não sei; se surge da necessidade ou é mero reflexo do passado (no sentido em que os que humilham efectuam a praxe se aproveitam para se vingar de humilhações passadas…), nem quero saber; o que me interessa é que se tem todo o requinte, e todo o descaramento, no rebaixar de muitos (vistos como estando no fundo de uma qualquer hierarquia arbitrariamente definida, como tantas outras…) aos pés de outros (que se considerem estar algures mais acima nessa mesma hierarquia), rebaixar esse que é físico, psicológico, moral, verbal, ideológico… enfim, a uma infinidade de níveis. E isto lembra-me demasiadamente o que se passa na sociedade, em grande escala, o que até daria um estudo sociologicamente interessante (ainda para mais porque, como já dei a entender antes, muitos dos que se sujeitam talvez o façam na esperança, ou na vontade, de virem futuramente a fazer outros sujeitar-se, o que nos permite estabelecer paralelos muito interessantes com o que se passa na sociedade…) se não se desse o caso de estarmos a lidar com seres humanos, que são totalmente dignos de respeito (todos os seres o são, no fundo, mas, neste caso particular, destaquemos os humanos, mais que não seja porque as praxes – e o ensino, em geral – tendem a ser um problema exclusivo dos humanos…). Claro, também se poderia alegar que este aspecto poderia ser melhorado, mas estou em crer que seria extremamente difícil eliminar esta humilhação sem arrasar grande parte do conceito das praxes, o que seria mais ou menos equivalente a arrasar as próprias praxes.

   E é precisamente do conceito das praxes que faz sentido falar agora. Como se disse, a melhor interpretação possível para este conceito é que se trata de uma forma de preservar a tradição, de louvar o espírito académico, de cooperação na aquisição e construção do conhecimento, que vigora, ou deveria vigorar, desde há séculos. Mas, para acreditarmos mesmo que assim é, parece-me que mais valia começarmos a ver arcos-íris e unicórnios às esquinas. Seis palavras: “manipulação e condicionamento” (vão três) e “elitização do conhecimento” (o que completa as seis). Percebem onde quero chegar? Espero sinceramente que sim, mas, já que aqui estou, mais vale explicar.

   Ora bem, essa questão toda do espírito académico é muito gira, mas, se formos bem a ver as coisas, aquele senhor de nome Kuhn não estava inteiramente enganado: o conhecimento não é produzido nem analisado independentemente das perspectivas de quem o produz ou analisa, e, nesse sentido, se garantirmos que a grande maioria das pessoas que poderiam vir a produzir e a analisar o conhecimento têm uma maneira semelhante de ser e estar, poderemos mais ou menos garantir que serão poucos ou nenhumas as descobertas capazes de abalar profundamente o status quo (e quem quer que seja que dele beneficie…); escusado será dizer que a praxe será um instrumento por excelência de obter essa garantia, sob a tripla máscara da diversão, da integração e da preservação da tradição (adicionalmente, o pormenor de os que se lhe sujeitam ficarem subordinados a outros ajuda a reforçar aquele pormenor – que quase desde a nascença se martela nas cabeças de todos… – de que as hierarquias existem, sempre existiram, sempre existirão e devem ser respeitadas e defendidas…). Por outro lado, ao incutirmos a noção de que há um grupo a que os indivíduos passam a pertencer, decorrendo esse agrupamento de questões académicas diversas, estamos, implícita e subtilmente, a promover e a defender aquele processo a que gosto de dar o nome de Elitização do Conhecimento, e que passa precisamente pela limitação, com propósitos e intuitos mais ou menos nefastos, da capacidade ou possibilidade de adquirir certos conhecimentos a certos grupos mais ou menos restritos, de acesso mais ou menos difícil, algo que não necessitamos de analisar muito profundamente para concluir que não é lá muito desejável. E isto, claro, é para não falar de outros níveis de organização da praxe, mais obscuros e nefastos, que algumas coisas aqui e ali deixam entrever, e que, em última análise, pintam um retrato tão adverso e tão inverosímil da coisa que mais facilmente me chamariam maníaco de conspirações diversas do que tentariam juntar os mesmos pontos que juntei… Mas deixem-me perguntar-vos assim: por que razão teria de haver um sem-fim de corpos e comissões diversas, uns formados por outros, numa matryoshka de instituiçõezinhas que se dedicam exclusivamente a actividades da praxe, e que se regem por códigos e regulamentos tão específicos que mais parece serem extraídos do Diário da República?

   Portanto, e em suma, o conceito e a execução da praxe deixam os dois bastante a desejar. No entanto, antes que caia tudo em cima de mim por ter tido o vago descaramento de o dizer, gostaria só de deixar a ressalva de que, em nada disso, pretendi, de forma alguma, ofender os participantes neste tipo de actividades (que, muitas vezes, até nem serão inteiramente voluntários, no sentido em que há a inevitável curiosidade humana, que pode levar a que se participe para ver verdadeiramente como é, fortes pressões – ou fortes manipulações sub-reptícias – no sentido de se participar, e a eterna questão da mentalidade de grupo, do “vou porque os outros vão”, que também será determinante, imagino que num número não tão reduzido de casos, para a adesão à praxe). Enfim, quanto àqueles que integram voluntária e deliberadamente a sua hierarquia, e que colaboram no sentido de a planear e executar, a história será um pouco diferente, mas nunca é de mais relembrar que falo sempre no geral, em relação às coisas em abstracto ou a estruturas e organizações (e, portanto, a entidades impessoais), pelo que não há razão alguma para quem quer que seja se sentir pessoalmente ofendido e iniciar aquilo que, na gíria internáutica, se chamaria uma flame war.

   De resto, gostaria, apenas, de deixar uma pequena (prometo que é pequena!) mensagem a todos os que se possam deparar, ou vir a deparar, com este tipo de situações, no sentido de os relembrar que qualquer decisão está correcta, desde que seja mesmo deles e não de outros, ou seja, desde que seja verdadeiramente a sua vontade fazer o que quer que seja que possam ter decidido fazer. Apesar disso, não me posso impedir de acrescentar que está sempre nas nossas mãos fazer a diferença, defendendo as nossas convicções e as nossas posições, independentemente de quantos possam estar do nosso lado, e que a palavra “não” existe, no fundo, para ser pronunciada…

   E será com estas palavras (pouco) inspiradoras e (pouco) poéticas que terminarei esta entrada, despedindo-me de vós, até à próxima vez que nos possamos reencontrar aqui, pela escrita…