29 de junho de 2016

Assuntos Tripartidos

   Antes de mais nada, quero apresentar os meus mais sinceros pêsames a todos os alunos por aí e por aqui que tiveram o desprazer de realizar os exames nacionais; não poderia continuar a escrever se não o dissesse. Ora bem, pelo título, creio que já vos dei a entender, caros leitores, que esta não é uma entrada exactamente normal. Bom, no fundo, nenhuma o é, até porque a normalidade é um conceito unicamente artificial e arbitrário, mas esta segue um modelo completamente diferente das outras (o que não é, de modo algum, intrinsecamente negativo…), no sentido em que aborda em simultâneo (ou melhor, sequencialmente…) três temas que se revelaram relativamente relevantes no âmbito da educação nestes últimos tempos (e para os quais arranjei alguma treta para dizer, que é o mais importante…). Portanto, e se me permitem a heterodoxia estrutural (termo que, embora pareça, em nada está relacionado com questões religiosas diversas… é uma heterodoxia no sentido figurado…), teremos três subtextos de seguida, três análises que, admito, serão relativamente abreviadas, mas acabam por ser o melhor que se arranja. Ora aí vêm…



I – Da Ressalva do IAVE

   Pouco tempo antes de se iniciar oficialmente a época de exames, os mui nobres e gentis senhores do Instituto de Avaliação Educativa, vulgo IAVE, vieram tranquilizar as indubitavelmente inquietas multidões de estudantes prestes a realizar qualquer um dos exames com a muito preciosa ressalva de que não haveria surpresas e o grau de dificuldade iria ser o mesmo. Esta é precisamente a primeira coisa que quero abordar.

   Bom, num certo sentido, e se formos na já mais que velha cantiga de que os exames são bons e necessários et cætera, e que são um instrumento importantíssimo para avaliar o conhecimento dos alunos, é mais do que positivo que o grau de dificuldade se mantenha, para que a avaliação do conhecimento dos alunos seja mesmo o mais fiável possível, de modo a que, de ano para ano, não haja injustiças.

   Mas sejamos realistas: os exames não servem propriamente para aferir o nível de conhecimento dos alunos, conforme já aqui se provou inúmeras vezes, e vir o IAVE dizer que serão iguais aos anteriores é – como  me lembrei logo de dizer assim que vi esta comunicação – estarmos nós acorrentados numa cave, onde, de temos a tempos, uns loucos /sádicos/psicopatas/serial killers macabros/captores cruéis/seja o que for aparecem para nos torturar, e ter vindo um desses torturadores à porta, lá em cima, posto a cabeça de fora e anunciar-nos, num tom de voz simpático e relaxante: “calma, tenham calma, meninos, que a gente já vos vem torturar, mas são as torturas a que já estão habituados, está bem?” Completamente tranquilizador, não é?

   Esta minha metáfora (mais que) ligeiramente estúpida à parte, importa mesmo frisar que anúncios e informações destas… enfim… são dispensáveis. É que, por um lado, o grau de dificuldade de dois conjuntos de exercícios nunca é igual (a não ser que os exercícios sejam exactamente os mesmos e aqueles que os fazem também: a dificuldade resulta não só da tarefa efectuada, mas também de quem a efectua…), e, por outro lado, também se está, de certa forma, a condicionar previamente aquela que seria a apreciação, ou, mais correctamente falando, o parecer que as várias associações de professores viriam a fazer dos exames (que, diga-se de passagem, e sem ofensa para ninguém, tendem a não ser propriamente tão rígidos quanto o IAVE o é nos critérios de correcção… ainda que, por vezes, haja umas – bem necessárias, convém acrescentar – ferroadazitas!).

   Mas pronto. Já falaram eles, já fizemos nós, e dia 13 de Junho logo haverá mais gente a reflectir sobre o grau de dificuldade dos exames… O problema é que é sempre o mesmo: só contestamos, só nos mexemos, quando nos toca directamente a nós…



II – Da Defesa da Escola Pública

   Um pouco mais recentemente que isto, vários autores de blogs do âmbito da educação (eu não!) publicaram um manifesto que afirmava a sua luta, e pretendia exortar os leitores a lutarem também, em prol da escola pública, defendendo, também, a gratuitidade do ensino, a adaptação das escolas às necessidades dos alunos e das comunidades e outras coisas.

   Ora bem, já analisei anteriormente as questões do público e do privado, nomeadamente aqui, mas não me coibirei de dizer que esta questão, à parte politiquices e ideologias diversas, é mais um bom exemplo do divide et impera em acção, concentrando as energias de pais e professores (e, em menor escala, alunos) no confronto directo dos apoiantes da perspectiva oposta em termos de público e privado para mais facilmente se deixar passar os grandes erros, as grandes falhas do actual sistema de ensino.

   Todo o debate e toda a reflexão (e, logicamente, toda a controvérsia também…) acerca do ensino acaba por constituir mais uma oportunidade para que se detectem e corrijam os problemas de que padece o sistema de ensino, mas o problema é que esta questão rapidamente descamba num debate sobre política e/ou economia… É claro que cada um tem direito às suas reivindicações, e os que agem no intuito de melhorar as coisas (como provavelmente será o caso dos subscritores do manifesto) devem ser louvados, mas talvez não estejam a agir da forma mais adequada para o conseguirem…

   Assim sendo, diria eu que, mais do que defender a escola pública, há que melhorar a escola em geral. E já sabem como, não é? Mini-Ciclos de Leccionamento!



III – Dos Contestatários dos Calendários

   Chegámos ao tema final, que, por acaso, diz respeito a uma forma de contestação. Que novidade, não é? Mas, para variar, esta contestação é alheia e não minha: trata-se exactamente do facto de, assim que são divulgados os calendários de um novo ano lectivo, haver sempre gente que se manifesta negativamente.

   Não me interpretem mal: nada tenho contra qualquer forma de contestação (à parte aquelas que prejudiquem injustamente outros seres…), e, aliás, até acho que se deveria contestar mais, contestar mais coisas, contestar mais frequentemente… A minha única questão é mesmo o facto de, como também se passa no assunto anterior, essas energias contestatárias estarem, muito provavelmente (e, mais uma vez, sem ofensa para ninguém), a ser mal empregues. É claro que podemos – e devemos – sempre manifestar o nosso descontentamento para com qualquer decisão (sobretudo para com aquelas em cuja tomada não temos qualquer parte activa…), mas torna-se mais eficaz se lutarmos pelo direito de sermos nós a tomar essa decisão.

   Para isso, e neste caso em particular, creio haver essencialmente duas opções: ou se tenta tornar a elaboração do calendário do ano lectivo um processo mais democrático, em que os pais e encarregados de educação possam ter alguma coisa a dizer (juntamente com os professores e os alunos…), ou se tenta mudar o sistema de ensino para alguma coisa que que possibilite aos alunos e respectivos pais ou encarregados de educação uma muito mais flexível selecção dos períodos de férias. E, se este último caso traz consigo o inconveniente adicional (não me lixem… que raio de inconveniente é este?) de introduzir várias alterações (que tão bem sabemos serem necessárias) no status quo, o primeiro também não é propriamente ideal, porque, mesmo numa democracia, há sempre vozes discordantes, e, logicamente, não se acabaria com a contestação. Assim, acho que o caminho deve estar mais ou menos traçado, não? Mais uma vez, Mini-Ciclos de Leccionamento!

   Um pouco paralelamente a isto, surgiu, também, uma sugestão ou uma recomendação, por parte de associações diversas de professores ou de directores, se não me engano, para que se passasse a efectuar a avaliação semestralmente. E quase que poderia fazer todo um outro subtexto sobre isto, mas, tendo esta nova subdivisão proposta todo a ver com a estruturação temporal do ensino, enquadra-se bem aqui.

   Sinceramente falando, a minha primeira reacção quando soube disto foi: “Mas que raio?” Está bem, eu percebo que, matematicamente falando, e admitindo que se seguem, na íntegra, as fórmulas e as folhas de cálculo que tanta gente gosta de brandir como escudo e/ou arma de arremesso, o resultado final vai dar ao mesmo (porque a nota final terá, em princípio, em conta a totalidade do ano lectivo…), e também entendo a questão de alunos em vias de chumbo no segundo período ficarem desmotivados e não fazerem nada no terceiro, mas pergunto-me para que é que tal mudança serviria…

   Tudo bem que isto implica menos reuniões e menos burocracias, o que é sempre um aspecto positivo, mas, por outro lado, isto também pode reduzir o feedback professor-aluno, no sentido em que, não havendo notas do segundo período, pode ser mais difícil o aluno detectar se está a ter problemas em acompanhar a matéria, o que pode fazer piorar a sua nota final. Nota essa que, como digo várias vezes, não reflecte adequadamente o nível de conhecimento dos alunos, pelo que isto tudo se torna uma não questão, já que qualquer divisão da avaliação é estúpida, por também ser estúpida a própria avaliação, e o sistema de ensino ideal seria (pelo menos, para mim…) os (já muito falados nesta entrada, como em quase todas as outras…) Mini-Ciclos de Leccionamento, onde a desmotivação seria mínima e os anos lectivos se tornariam um conceito do passado…



   E pronto, é isto, é esta a heterodoxia estrutural que eu tinha prometido. Sei que não é nada de espectacular, mas dêem-me um bocadinho de tolerância… ou, se assim o preferirem, sugiram-me temas bons e interessantes para abordar…

   Seja como for, obrigado por terem passado por cá, fiquem bem, contestem sempre o mais que possam, e até à próxima entrada…

16 de junho de 2016

Sobre a Elitização do Conhecimento

   Caros leitores, nesta semana que marca o início da época do tormento ignóbil que são os exames nacionais (e contra os quais talvez valesse a pena, dentro do género, tentar lutar… não?), trago-vos uma entrada que, não sendo propriamente nada de muito inovador, constitui, na mesma, o que eu diria ser uma certa mudança de tom e de tema que talvez venha refrescar os ares aqui no blog. Está bem que não saímos das questões do ensino, mas vamos agora fazer uma análise um pouco mais reflectida e menos contestatária, de contornos (semi-)históricos e essência (semi-)filosófica. Espero que isso não vos incomode muito.

   Ora bem, o que é que eu quero dizer com isto da “elitização do conhecimento”, ainda para mais nesta época em que praticamente toda a informação do mundo pode facilmente ser acedida, premindo uns botõezinhos com letras em cima, ou arrastando os dedinhos por um ecrã? É (relativamente) simples: trata-se da tendência (já antiga, como vamos ver, mas ainda bem viva nos dias de hoje) de tornar o conhecimento, o verdadeiro conhecimento (portanto, não propriamente dados, mas a forma de os relacionar e interpretar), algo exclusivo de um grupo mais ou menos restrito de pessoas, grupo esse cuja maneira de ser e estar se consolida e perpetua com esse mesmo monopólio do conhecimento. Isto, no fundo, trata-se de mais uma manifestação da tendência conservativa e auto-perpetuante das sociedades (neste caso em particular, correspondentes aos grupos detentores do conhecimento, embora estes, por usa vez, também se encontrem subjugados aos interesses e intuitos da sociedade mais vasta, mais abrangente, que, naturalmente, engloba esses grupos e os restantes cidadãos…), e, nesse sentido, é algo vagamente expectável, pelo que não devemos ficar demasiado espantados por acontecer. Mas já sabem como sou e como penso: esse mesmo facto não nos pode levar a pura e simplesmente aceitar que as coisas sejam assim.

   Não vale a pena entrarmos nas questões dos segredos de estado, das informações confidenciais e da espionagem, porque, além de, no fundo, se tratar de informações e não de conhecimentos (que, sem filosofias transviadas, terão um carácter “operativo”, ou seja, de raciocínio e/ou noção de como fazer, e não um carácter meramente “indicatório”, de mera constatação de um estado de coisas, como têm as informações), introduz um nível de complexidade adicional, pela vasta gama de factores que os influencia e determina (e também pela sua génese e natureza maioritariamente extra-ensino, o que leva a que fujam quase completamente ao âmbito deste blog). Nesse sentido, a esmagadora maioria dos casos que restam para analisarmos (e descontando as situações de elitização de eventuais conhecimentos metafísicos e/ou transcendentais, que entra já no domínio das sociedades secretas, da religião, da fé – e, eventualmente, da charlatanice…) diz respeito, em maior ou menos escala, ao ensino, e aos vários tipos de estruturas académicas que formam construídas a partir dele ou em torno dele.

   O ensino, ou a transmissão de conhecimentos, remontará muito provavelmente às primeiras comunidades humanas. É mais do que óbvio: as gerações mais antigas, que mais experienciaram do mundo, transmitiam as suas experiências e as suas técnicas de sobrevivência às gerações mais novas, assim garantido que a comunidade continuaria activa – e viva. Neste sentido, mesmo que haja uma acumulação do conhecimento, total ou parcialmente, num grupo mais ou menos pequeno, não fará sentido falar-se de elitização do conhecimento, porque esse grupo estava tudo menos interessado em manter esse conhecimento só para si.

   Isto correu tudo muito bem enquanto as comunidades eram pequenas e a transmissão podia ser mais ou menos directa, mas, à medida que a densidade populacional aumentava e que as tarefas se tornavam cada vez mais específicas, passou a haver problemas: pela natureza simultaneamente gregária e facciosa do ser humano, os indivíduos que se dedicavam a uma tarefa específica acabaram por se juntar, gerando um grupo mais ou menos fechado e mais ou menos estanque, que mantinha em si os segredos do ofício em causa. Logicamente, só entraria nesse grupo aquele que fosse digno de representar a classe dos profissionais em causa, e essa dignidade só se atingia após alguns (bastantes…) anos de aprendizagem e experiência. E isto, com mais umas situaçõezinhas aqui e ali, com mais umas burocracias, umas formalizações e umas leis, originaria aquilo que viriam a ser, pelo menos cá na Europa, as guildas (passou bastante tempo entretanto, é claro; isto foi um processo gradual e não instantâneo…). Se este tipo de organização trazia a grande vantagem de consolidar e (eventualmente) estimular o melhoramento dos conhecimentos, também era francamente elitizado, já que subir na hierarquia da coisa (o que traria consigo aceso a conhecimentos cada vez mais “preciosos”) não era propriamente imediato…

   Só que falar disto assim é calar, entre outras coisas, um aspecto bastante relevante, num período, aliás, em dois períodos históricos bastante interligados, e de grande importância para o desenvolvimento desta sociedade dita ocidentalizada (terá certamente havido outros semelhantes para outras culturas, mas, quer pelo público-alvo de tudo isto, quer pela própria abrangência dos meus conhecimentos – ou falta dela –, vou resumir-me a estes dois aspectos, de modo a não cometer mais erros históricos do que os que já possa ter feito); acho que será mais ou menos óbvio do que é que falo: dos filósofos da Antiguidade Clássica e dos humanistas do Renascimento. Nestes dois períodos, como os leitores provavelmente saberão, houve literalmente dois picos na liberdade de acesso ao conhecimento, havendo, dentro do género, abertura para discutir livremente uma vasta gama de assuntos (um pouco menos, talvez, no caso de Renascimento, mas, ainda assim…). Bem, não obstante toda esta liberdade, também não podemos deixar de pensar que, no fundo, ainda se verificava uma certa elitização do conhecimento, no sentido em que, na maioria dos casos, acabava por ser necessário pertencer a um determinado grupo social e ter um determinado tipo de atitudes e mentalidades para verdadeiramente ter a possibilidade de procurar e adquirir os conhecimentos… sobretudo quanto temos em conta o analfabetismo mais do que frequente nos estratos menos privilegiados da sociedade… mas isto também já é ser maldizente…

   Historicamente falando, falta ainda falar do elefante na loja de porcelana (ou na sala, se formos mais anglo-saxónicos…): a questão da religião. Em maior ou menor escala, consoante a cultura e a sociedade em que se insere, a religião, com o seu papel aglutinador e estabilizador da estrutura social (no melhor e no pior sentido…), acaba sempre por desempenhar um papel relativamente determinante nestas questões da elitização do conhecimento (e da própria transmissão do conhecimento em si). Por um lado, se estimular (ou, pelo menos, não impedir) a inovação e a renovação do conhecimento, naturalmente que conduz a uma maior disponibilidade do conhecimento (com a eventual – e já abordada – particularidade de, mesmo assim, só alguns o poderem atingir), mas, por outro lado, se fizer a apologia da manutenção do conhecimento, da confirmação do anteriormente confirmado, enfim, da evolução da continuidade, será bastante expectável que, mais tarde ou mais cedo, o conhecimento acabe por ficar nas mãos de um grupo restrito de pessoas (para garantir que nenhuma – ou quase nenhuma – mente mais livre, menos disposta a manter a estabilidade, pega nesses conhecimentos e desata a desconstruí-los…), elitizando-se, portanto.

   Mas pronto, os leitores talvez já se estejam a perguntar, ou talvez já se tenham perguntado, “a que propósito é que vem esta porcaria toda?”. Pois bem, creio que não será preciso um grande esforço de raciocínio para nos fazer ver que o presente é consequência do passado, e, nesse sentido, de modo a melhor analisarmos (e, sim, pronto, criticarmos) esse presente, convém estarmos cientes do que foi esse passado.

   E, no caso particular do sistema de ensino português, e basicamente em toda a sociedade ocidentalizada, não podemos, de modo algum, ignorar aqueles que são as suas raízes, que residem precisamente nas tradições escolásticas medievais. E, como é sabido, estas tradições escolásticas inserem-se precisamente num contexto religioso que era profundamente conservativo (enfim, sem querer ofender ninguém… esta questão das religiões é sempre espinhosa, convém ter sempre muito cuidado e deixar sempre bem presente esta ressalva: a de que não pretendo, de modo algum, ofender, criticar ou desdourar a fé de ninguém…), gerando, por isto, este já tão repetidamente mencionado fenómeno da elitização do conhecimento. Eventualmente, esta tradição escolástica deu lugar à académica, com a fundação das primeiras universidades e tudo o mais, mas, durante um grande período de tempo (alvitraria eu que até ao século XVIII ou XIX, com o advento do iluminismo, do liberalismo ou de uma outra ideologia nessa veia mais aberta, mais transparente, mais progressiva), esteve sempre fortemente dependente de e fortemente condicionada por questões religiosas diversas, mantendo, portanto (e nem sei bem porque estou a repetir tanta vez esta mesma expressão…) o conhecimento elitizado. E, por mais que as alterações sociais (será sempre relativamente debatível se serão progressos ou não, pelo que não lhes atribuirei esse epíteto) possam ter intervindo entretanto no intuito de reverter essa elitização do conhecimento, nunca se deixou de verificar essa tendência, que, em última análise, se estende até aos dias de hoje.

   É claro que não é a religião a (única) culpada disto: como comecei por dizer, a elitização do conhecimento é consequência da própria natureza do ser humano e da sociedade; no entanto, e acho que também me estou a repetir aqui, não é por as suas origens serem perfeitamente compreensíveis que a elitização do conhecimento é desejável. O conhecimento é, em última análise, uma coisa imaterial, construída como que a partir do nada, e, nesse sentido, será muito pouco razoável reivindicar a posse ou o domínio desse mesmo conhecimento, até porque (questões experimentais diversas à parte…) acaba por não ser necessário despender recursos para o originar.

   Independentemente disto, ou melhor, paralelamente a isto, sou levado a admitir que tenho estado a ser dogmático ao afirmar pura e simplesmente que a elitização do conhecimento ainda se verifica na nossa sociedade, sem dizer como, onde e porquê. É claro que, no que toca ao ensino obrigatório (básico e secundário), só por má vontade se diria que elitizamos o conhecimento, já que até se obriga os alunos a adquirir esse conhecimento (quer o queiram, quer não…), e, de resto, sendo as coisas como estão e estando as coisas como estão, o autodidactismo está ao alcance de praticamente qualquer um. O problema está quando temos em conta questões científicas, ou, de outra forma, académicas, (vistas como) de maior profundidade; podemos admitir que é frequente a adopção de um vocabulário, de um discurso ou, genericamente, de uma forma de dizer as coisas que dificulta (quando não impossibilita mesmo) a total compreensão aos “não iniciados” no assunto em causa.

   É claro (acho eu… but one can never be too sure when it comes to human beings…) que isto não surge de um esforço consciente, voluntário, concertado, maquiavélico no sentido de minar a compreensão dos outros (aliás, diria mesmo que muitos tecnicismos e muitas questões formais aparentemente confusas até que têm uma razão muito lógica para existir… mesmo que pudessem ser, pelo menos nalguns casos, evitados…), mas temos de reconhecer que gera uma situação bastante análoga aos paradigmas de Kuhn: para se estar em condições de se adquirir os conhecimentos (eventualmente para os desconstruir e melhorar…), é quase que obrigatório passar-se por um processo de aprendizagem que, em grande medida, incute aos alunos a forma de ser e estar daqueles que, até então, eram os detentores desse conhecimento, o que conduz, em última análise, à estagnação dos conhecimentos (porque essa forma de ser e estar, na maioria dos casos, acaba por envolver a aceitação e defesa de conhecimentos que praticamente se passou a ter como absolutamente verdadeiros) e da sociedade (porque se continua a manter o grupo restrito de conhecedores, que conduz ao famigerado divide et impera que é tão responsável pela ausência de alterações…).

   Portanto, fazendo um ponto de situação: a elitização do conhecimento é má, e temos elitização do conhecimento. Logo, as coisas estão más, o que quer dizer que temos de as corrigir. Importará, então, saber como. A própria natureza dos conhecimentos que o ser humano tem vindo a adquirir, nas mais diversas áreas, e as limitações psico-fisiológicas de cada indivíduo ambas implicam que seja extremamente difícil atingir o conhecimento quase total no âmbito de uma dada área do conhecimento (pior ainda se for em várias…), e muito menos sem instrução prévia; nesse sentido, há sempre uma certa dose inevitável de elitização de conhecimento, que, sendo inevitável, não conseguiremos nunca eliminar. Mas há uma coisa ou outra que ainda podemos fazer: tentar diminuir (e eliminar) a questão das elitezinhas académicas, enfim, aquele síndroma do “ó’ p’ra nós que somos alunos universitários” (que passa também por aquela resposta estúpida e repetitiva do “não se queixem, que na universidade será pior” a tudo quanto seja contestação aos exames, não sei se sabem do que falo…). Por outras palavras, há que acabar com a abrupta clivagem entre aquele que é o mundo académico-científico, sempre intrinsecamente ligado ao ensino superior, e aquele outro que, por exclusão de partes, não posso dizer senão ligado ao ensino “inferior”. E como se faria isto? Com um progresso mais natural e contínuo do conhecimento, com as matérias separadas, etc. Já estão a ver onde quero chegar? Mini-Ciclos de Leccionamento!

   Não me interpretem mal em nada do que disse: tenho o máximo respeito pelo conhecimento, qualquer que ele seja (já que, e podem sempre aproveitar-se desta frase, o conhecimento é tudo e tudo é conhecimento), e não duvido do seu valor; semelhantemente, respeito e louvo inteiramente o a força de vontade e o espírito de sacrifício daqueles que se esforçam para o atingir; só não penso o mesmo dos seres humanos que fazem gosto em alardear que são seus detentores, ou das instituições que têm a pretensão de afirmam ter como missão, intuito e propósito transmiti-lo…

   Enfim, se isto foi ainda mais chato do que o costume, peço desculpa, mas apeteceu-me variar um pouco… Não sei, mas, pronto, se se sentirem metafisicamente inspirados a tal, podem sempre rebater todas as tretas coisas que eu para aqui disse, usando, com esse propósito, o espaço de comentários aí em baixo. Ou também podem não as rebater. É convosco.

   Eu, pela minha parte, pouco mais terei a acrescentar, (medianamente) concluído o raciocínio, (totalmente) concluída esta entrada… Direi, apenas, que vos dirijo os mais cordiais cumprimentos, e que é com essa mesma cordialidade que me despeço, até à próxima entrada…

7 de junho de 2016

Das Perspectivas Educativas

   As minhas mais cordiais saudações a todos os leitores. Como talvez tenham mais ou menos adivinhado, ou assim não tanto, enfim, apesar das duas entradas de há duas semanas, tenho andado um pouco falto de temas. Já conhecem bem o fenómeno, a inspiração transviada, a mistura pouco explosiva mas muito nociva de excesso de vontade de mudar o actual sistema de ensino e de falta de vias de acção imediatas para mudar o actual sistema de ensino, e tudo o mais, e tudo isto a resultar em entradas… da treta. Como esta. Enfim, no meio das nenhumas opções que tinha, esta que me surgiu pareceu ser a menos má: vou falar-vos de uma certa tendência que desde há algum tempo tenho vindo a verificar, em tudo quanto seja debate ou reflexão sobre o ensino, e que é a de se estabelecerem duas facções, ou duas correntes de pensamento, com ideias e tendências aproximadamente opostas.

   De um lado, temos aqueles a que, sem ofensa para os referidos ou para os referentes, gosto de chamar (semi-)humoristicamente “hippies educativos”. É aquele grupo de pessoas que defende uma visão holística para o ensino, ao abrigo da qual se deveria dar primazia à cidadania, às preocupações ambientais, ao trabalho em equipa, à criatividade, à aquisição e/ou ao desenvolvimento de competências pessoais, à resolução de problemas e a coisas afins, tudo isto com aulas mais livres, com uma relação aluno-professor mais directa, tendo o aluno tendencialmente maior autonomia para definir o seu currículo em consonância com o professor e/ou havendo grupos de trabalho mais ou menos individualizados, em que vários alunos com interesses/tendências/capacidades semelhantes trabalham uns com os outros para aprender. Será, pois, algo mais ou menos no seguimento da Escola da Ponte.

   Do outro lado da barricada, estão aqueles a que, com espírito e intenção semelhantes (e, portanto, também sem querer ofender), tenho por hábito chamar “burocratas totalitários”. De uma maneira geral, são aqueles que insistem na santidade dos valores do trabalho, do empenho e da dedicação dos alunos, bem como no valor inalienável, absoluto e absolutamente obrigatório do rigor, da rectidão, da exigência e da objectividade, defendendo, por isso, um sistema de ensino bastante semelhante ao actual, em que tudo são notas, testes, exames, avaliações, medidas, números, cobrindo todas as eventuais falhas na argumentação ou na própria ideia com a sempre falaciosa (mas sempre utilizada) referência ao (aparentemente incontornável) facto de todos sermos avaliados ao longo da vida, ou uma qualquer barbaridade semelhante.

   Os leitores que me perdoem por não ter tido a imparcialidade necessária para não deixar transparecer o facto de esta última corrente me parecer muito mais errada, ou, no mínimo dos mínimos, muito mais prejudicial do que a primeira, mas também devo dizer que, como sempre, não me enquadro propriamente em nenhuma delas. Já sabem porquê, não é? Ou não? Enfim, não sei se vos interessa, mas, pronto, vou partir do princípio que vos interessará minimamente, porque, caso contrário, faria pouco sentido ter escrito isto tudo…

   Bom, antes que deambule demasiado por estas vias do pensamento negativo, vou retomar o tema. Independentemente dos possíveis argumentos a favor de cada uma das perspectivas (que eu até poderia tentar dar, se não se desse o caso de sofrer da grande falha que é não conseguir argumentar em prol daquilo em que não acredito), não podemos negar que, em ambos os casos, há um fundamento muito lógico para ambas as atitudes. Por um lado, para que todos possamos conviver em sociedade, torna-se mais ou menos essencial que sigamos um certo conjunto de regras e princípios, e, nesse sentido, percebe-se que se os queira transmitir de uma forma mais ou menos garantida e sistematizada, via sistema de ensino; o problema é que há uma linha muito, muito fina entre instrução benfazeja e condicionamento quase orwelliano… e também não nos podemos esquecer de que, no fundo, o propósito do ensino é a tal história de ensinar, leia-se transmitir conhecimentos racionais, e não propriamente o de educar, isto é, transmitir valores e conhecimentos/capacidades mais subjectivos. Por outro lado, também se percebe que se queira garantir que todos os alunos efectuaram as aprendizagens que deveriam ter efectuado, para que não haja falhas de conhecimento que os possam prejudicar em aprendizagens e/ou tarefas futuras; o problema é que, conforme já disse mais vezes do que as que me apetece contar, os testes e os exames e essas tretas todas não reflectem adequadamente o nível de conhecimento dos alunos, e, além disso, avaliar umas matérias em particular em nada contribui para as ensinar melhor, já que o ano continua e vêm mais matérias pela frente. Assim, em ambos os casos, podermos dizer, ou direi só eu porque sou só eu que estou a escrever isto, que se está a tentar fazer uma coisa boa, mas não pelos meios mais apropriados. Então, o que poderemos, ou deveremos, fazer?

   Para mim, a resposta é clara: simultaneamente alterar radicalmente o actual sistema de ensino de modo a implementar os nossos amigos Mini-Ciclos de Leccionamento, ao abrigo dos quais só se veria reconhecido que se aprendeu uma matéria se, de facto, se a tiver aprendido na sua totalidade (assim seguindo a intenção original dos “burocratas totalitários”), e, com base nisso, fazer com que o sistema de ensino ocupe uma menor porção do tempo dos alunos, levando a que tenham mais tempo de convívio e de interacção com os mais diversos elementos da sociedade, assim potenciando a transmissão – até de uma forma mais natural – dos valores e dos princípios essenciais à coexistência pacífica com os restantes seres humanos, bem como as competências de socialização, de cidadania, de criatividade e tudo o mais (satisfazendo, assim, as preocupações dos “hippies educativos”). E isto, pelo menos, para mim, afigura-se-me como uma terceira corrente, uma terceira postura, que, na mesma veia pouco cómica dos nomes anteriores, poderei dizer ser a dos “revolucionários de bolso”, porque, no fundo, será isso que somos, todos nós (sejamos quantos formos…) que acreditamos nesta questão dos Mini-Ciclos. Mas nada melhor que uma revolução de bolso para melhorar o mundo!

   Pronto, já sei o que vão dizer. “Tanta coisa para ir dar ao mesmo. Mini-Ciclos de Leccionamento para aqui, Mini-Ciclos de Leccionamento para ali, este gajo não sabe falar de mais nada!” Bom, não vos posso contradizer: vou sempre parar aos Mini-Ciclos de Leccionamento, de facto, e reconheço que até parece que não sei falar de mais nada. E, se calhar, até nem sei. É que, se me perdoam a convicção, não encontrei, até agora, uma alternativa melhor, ou mais agradável, ou mais funcional (pelo menos, na minha projecção mental das coisas) que os Mini-Ciclos de Leccionamento, e, nesse sentido, sou levado a defendê-los e a promovê-los sempre que posso. Se, algum dia, chegar à conclusão de que há uma alternativa melhor, então, passarei a defendê-la tão acerrimamente quanto defendo os Mini-Ciclos, mas, até ver, não desistirei deste esforço de mudança. E peço-vos a vós, leitores, que também não desistam de tentar mudar o mundo para melhor!

   Até à próxima entrada…